Cultura

Eça, insurgente

“Eu gostaria de poder jantar com Eça, ele era uma pessoa divertida, me fez crer em escrever”, diz Agualusa

A sessão do mês de agosto do programa literário do Centro Cultural Unimed-BH Minas, o Letra em Cena. Como ler…, na sua versão on-line, trouxe a análise das letras e Eça de Queiroz (1845-1900) sob o olhar do escritor angolano José Eduardo Agualusa. O programa contou com leitura das páginas finais de “Os Maias” feita pelo ator Glicério do Rosário e depoimento de Lélia Parreira Duarte, especialista na literatura portuguesa da UFMG. Em uma boa conversa, Agualusa confessou que “Eça é o responsável pela minha carreira literária. Foi o Eça que me empurrou para ser escritor. Eu sou um filho do Eça de Queiroz”. A sessão pode ser vista no canal oficial do Minas Tênis Clube no YouTube.

 

 

Sobre como conheceu Eça

Eu aceitei participar desse programa porque realmente acho que devo isso ao Eça. Aquela frase “esse livro mudou a minha vida”, no meu caso, aconteceu mesmo, quando li o livro “Os Maias”. Eu não li para escola, apesar desse livro ser pedido para ler na escola. Lembro que fiquei de tal forma deslumbrado, que aquele livro me despertou para a literatura. Me fez crer em escrever. 

Sobre a relação com a literatura

O Eça estava ligado a um grupo que queria transformar e revolucionar a literatura. Eles próprios se classificavam como os vencidos da vida. Então, é um pouco se ele não acreditasse nesse lado, né? De um certo ceticismo, porque ao mesmo tempo que ele critica os vícios do seu tempo, ele é muito cético. Às vezes de uma forma assustadora quando nós pensamos na posição do Eça sobre a escravatura, por exemplo, ele coloca em dúvida que seja possível a abolição. O Eça não acreditava muito, ele dizia: isso existe desde o início dos tempos, não é agora que vai parar. Ele não acreditava que deixasse de ser legalmente possível escravizar pessoas.

Sobre a igreja

O Eça era muito progressista, mas ao mesmo tempo tinha um ceticismo, que era temperado com uma ironia muito grande. Ele tem um lado idealista mas um lado ceticista que temperava seus textos.

Sobre a ironia

São raríssimos escritores portugueses que têm e que usam esse recurso, e que têm ao mesmo tempo essa vitalidade e essa alegria do Eça. Não é uma coisa portuguesa e nem era uma coisa francesa. Porque o Eça, como todos os escritores da época, tinham um olhar dirigido à França, que era a grande potência cultural da época. A minha tese é que vem [a ironia] da África através do Brasil. O Eça foi educado por uma ama brasileira e tinha um empregado na casa que também era brasileiro. Ambos negros. Ele ouviu muitas histórias contadas por esses dois personagens, acredito que ele tenha encontrado neles essa arte de contar histórias, esse olhar mais irônico e essa alegria de falar.

O livro preferido

O livro que continuo a reler mais é “Os Maias”. Tem esse personagem extraordinário que é o alter ego do Eça, o João da Ega, ele exerce essa auto ironia também. Ou seja, a forma como ele descreve o João da Ega, até fisicamente, é um pouco caricatural. Então, o personagem que mais gosto é o João da Ega, porque é muito engraçado. Eu gosto de “Os Maias”, da “A cidade da Serra”, de “O Mandarim”, que era o preferido da minha mãe, e depois gosto muito de um livro que é muito atual, “A Relíquia”, um romance de crítica a esse fundamentalismo religioso que hoje toma conta até do poder de certos países, como no Brasil. Portanto eu acho que devia ser de leitura obrigatória.

Sobre a forma de escrita de Eça

Eu acho que o Eça era um grande estilista. Talvez não tenha havido nenhum outro escritor assim. E mesmo os escritores contemporâneos, não são. Talvez [António] Lobo Antunes, que é um estilista atual, e só.

Novos leitores

O Eça, em parte, foi vítima da sua própria popularidade institucional. Ou seja, o fato de ser um autor institucional o desmoralizou perante a juventude, vamos dizer assim. O Eça merece a atenção da juventude. Eles não conhecem o Eça, ele é um autor revolucionário, um insurgente. Capaz de chocar na sua época e capaz de chocar ainda hoje. Para trazer novos leitores para o Eça, temos que denunciar seus livros como contra a moral cristã esperando que os fascistas cristãos ouçam a nossa conversa e em sua indignação queimem seus livros. A literatura boa incomoda, se não incomodar é porque não é boa.

A próxima sessão do Letra em Cena on-line será no dia 14 de setembro e terá a obra de Manoel de Barros (1916 – 2014) analisada por Fabrício Carpinejar. 

 

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